Cúmplice

Na rua da minha casa o cachorro de um morador de rua sentado no chão estica a coleira até alcançar o policial que passava, sobe em gracejos nas coxas fardadas, o rabo animadíssimo, as patinhas vacilando perto do coldre, é um filhote. O policial constrangido se dobra levemente de ternura, olha nos olhos do cachorro e evita os olhos do dono, os dois humanos sabem que esse encontro é constrangedor, eu também sei, o policial toca a cabeça peluda e o bicho fecha os olhinhos de devoção, é filhote, ainda não aprendeu que o costume é estes homens serem quase inimigos, a falta de ódio é desconcertante, estamos todos constrangidos, eu ali testemunha.

Na volta do trabalho, já é de noite, chove um pouco, e na rua atrás da minha casa os moradores de rua deitados sob a marquise cantam um pagode, Cheia de Manias, entoam todos juntos o refrão, poderiam ser meus amigos na sarjeta de um carnaval, não são, no segundo refrão os jovens do bar em frente se contagiam e cantam também, poderiam estar sentados no mesmo bar cantando, não estão, todos soam felizes nessa súbita união, os jovens batucam nas mesas, os moradores de rua nas caixas de papelão e carrinhos de supermercado tombados, mas há um constrangimento evidente.

Quando eu era pequena amava o barulho dos pneus no asfalto molhado, se chovia de noite meus pais me punham no carro só para que eu dormisse escutando isso, era o melhor som que podia haver em toda a existência. Uma noite, no meio de um desses passeios de puro prazer, notei um morador de rua com frio, molhado, tentando se encolher sob um toldo curto, e percebi que a água que eu amava podia ser muito cruel. Tentei, mas não consegui naquela hora parar de amar o ruído da chuva noturna sobre o asfalto, num fim de domingo vazio, não mudou a intensidade do meu amor, mudou alguma outra coisa, o constrangimento.

Os jovens do bar cantando o pagode junto com os moradores de rua no chão, alguma coisa parecida com o constrangimento da manhã, o cachorro amando o policial, eu de novo testemunha, o desconcerto de haver uma coisa inocente, afetiva, um filhote ou um pagode antigo, que faz duas humanidades parecerem tão próximas, e essa sensação por seu avesso escancarar o abismo entre esses homens, eu toda hora testemunha, sigo o caminho, constrangida. Totalmente cúmplice.

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