Ele quem tem passeado com os cachorros, dez minutos de sol, as mãos se atrapalham, eu sei, com o pote de álcool gel, os sacos de lixo, a máscara, as duas coleiras. Antes eu reparava menos nos movimentos das mãos dele. Quando voltam do passeio ouço a respiração animada dos cachorros, a língua arfando, sempre felicíssimos por sair, voltar, ficar, a alegria desmedida de adivinhar o próximo passo, acertar as previsões da rotina, é agora, agora a porta vai se abrir, agora, agora vamos deitar do lado do pote de água. Eles já aprenderam a nova ordem mundial, ouço o elevador e a respiração animada, o tilintar das coleiras, os dois se sentam ao pé da escada para receber o álcool gel nas patas, depois esperam que ele tire os tênis, a máscara, as mãos dele embaralham a sequência das coisas, o spray nas coleiras a máscara do avesso no bolso os tênis no piso de fora e os pés no piso de dentro – o que é impossível, eu já verifiquei, é impossível tirar os sapatos fora da casa sem pisarmos descalços fora da casa, então eu jogo o chinelo pra ele – as mãos sobrecarregadas da missão, os cachorros notam a imprecisão do passo-a-passo. Hoje fui junto, precisava parar no correio e na venda para um frango, um leite e um abacaxi. Ele começa a guiar o passeio num mapa mental detalhado, é preciso começar pelas beiradas da praça até os cachorros se acalmarem, ele diz, depois eu costumo subir aqui neste canteiro, mas só quando não tem outros cachorros, ele continua, vai me descrevendo sua cartografia canina e eu percebo que é preciso segui-la, ele também tão contente de adivinhar o próximo passo, acertar as previsões da rotina, depois do canteiro deve-se contornar a guarda municipal, que é exatamente ali que o pequeno consegue fazer suas necessidades, o que de fato se revelou infalível, ele continua descrevendo os perigos e vantagens de cada escolha traçada no seu mapa mental, cada alternativa já foi antes testada nos passeios anteriores então é indiscutível que esta cartografia, esta que eu testemunhava agora, era a cartografia definitiva. Agora eu vou por ali atrás da Igreja, ele indicou, onde nunca tem ninguém, a voz abafada da máscara quente. Os três me esperam na porta dos correios. Um letreiro piscando na avenida diz Não leve as mãos ao rosto. Passa um carro de som tocando a clássica música do caminhão de gás, os pedestres, ele, eu, os atendentes do correio, todos olhamos preenchidos de nostalgia, São Paulo quieta e vazia é o único cenário possível para esse som da infância, mas não é um caminhão de gás, é um carro de anúncios diversos, após a música do gás o alto-falante fornece o whatsapp do caminhão de gás. Frango, leite, abacaxi comprados, está terminado o mapa do passeio, elevador álcool tênis chinelos coleiras patas, as mãos os rituais, entramos. Desde o começo da pandemia, hoje foi a primeira vez que eu soube da morte de um conhecido. Tive vontade de chorar várias vezes no dia, mas não consegui. Amanhã é aniversário do meu pai, que está em outro bairro, o que agora é longe. Comecei este diário quatro anos atrás e a graça de ter um diário é ver agora o que era possível pensar antes de saber o futuro, cada registro tem uma ignorância espantosa sobre os registros do ano seguinte. Meus cachorros avançam pela casa seguros da incontestável permanência de tudo isso que somos juntos. Às vezes é bom olhar pra eles, a convicção com que obedecem à nova cartografia dos passeios, a satisfação de estarmos tanto tempo em casa, às vezes é muito bom olhar pra eles e pensar, com eles, que está tudo tão bem. Feliz aniversário, pai. (diário, 20/4/2020)
